quarta-feira, julho 23, 2008

água viva

sessão lispector (me entenderia!)

Espelho? Esse vazio cristalizado que tem dentro de si espaço para se ir para sempre em frente sem parar: pois espelho é o espaço mais fundo que existe. E é coisa mágica: quem tem um pedaço quebrado já poderia ir com ele meditar no deserto. Ver-se a si mesmo é extraordinário. Como um gato de dorso arrepiado, arrepio-me diante de mim. No deserto também voltaria vazia, iluminada e translúcida, e com o mesmo silêncio vibrante de um espelho.
A sua forma não importa: nenhuma forma consegue circunscrevê-lo e alterá-lo. Espelho é luz. Um pedaço mínimo de espelho é sempre um espelho todo. Tire-se a sua moldura ou a linha de seu recortado, e ele cresce assim como água se derrama. O que é um espelho? É o único material inventado que é natural. Quem olha um espelho, quem consegue vê-lo sem se ver, quem entende que a sua profundidade consiste em ele ser vazio, quem caminha para dentro de seu espaço transparente sem deixar nele o vestígio da própria imagem - esse alguém então percebeu o seu mistério de coisa.
Para isso há de se surpreendê-lo quando está sozinho, quando pendurado em um quarto vazio, sem esquecer que a mais tênue agulha diante dele poderia transformá-lo em simples imagem de uma agulha, tão sensível é o espelho na sua qualidade de reflexão levíssima, só imagem e não o corpo. Corpo da coisa.
Ao pintá-lo precisei de minha própria delicadeza para não atravessá-lo com minha imagem, pois espelho em que eu me veja já sou eu, só espelho vazio é que é o espelho vivo. Só uma pessoa muito delicada pode entrar em um quarto vazio onde há um espelho vazio, e com tal leveza, com tal ausência de si mesma, que a imagem não marca. Como prêmio essa pessoa delicada terá então penetrado em um dos segredos invioláveis das coisas: viu o espelho propriamente dito. E descobriu os enormes espaços gelados que ele tem em si, apenas interrompidos por um ou outro bloco de gelo. Espelho é frio e gelo. Mas há a sucessão de escuridões dentro dele - perceber isto é instante muito raro - e é preciso ficar à espreita dias e noites, em jejum de si mesmo, para poder captar e surpreender a sucessão de escuridões que há dentro dele.
Com cores de preto e branco recapturei na tela sua luminosidade trêmula. Com o mesmo preto e branco recapturo também, em um arrepio de frio, uma de suas verdades mais difíceis: o seu gélido silêncio sem cor. É preciso entender a violenta ausência de cor de um espelho para poder recriá-lo, assim como se recriasse a violenta ausência de gosto da água
Não, eu não descrevi o espelho - eu fui ele. E as palavras são elas mesmas, sem tom de discurso.
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